ALÉXIA WALTRICK

Dona de um rosto forte, marcante, expressivo. Num caminhar implacável e firme, por vezes confundido com arrogante ou blasé, Aléxia Waltrick não passa por Florianópolis sem ser notada.  Aos dezoito anos, a aparência de francesa é completamente justificável: são nas referências da década de 1920 que ela mais busca inspiração – e busca até hoje um amor em vermelho a cada vez que assiste ao Moulin Rouge. Encontrei Aléxia em um de seus lugares preferidos da cidade, o Museu Cruz e Souza. E não haveria lugar melhor na ilha para servir como cenário e palco a ela. A história se mistura com os sorrisos e o batom vermelho da garota que é um baú de sentimentos. Um baú de causos que, depois de dezoito anos, é aberto e revelado. Numa história em que os mocinhos são, na verdade, mocinhas, e os vilões, que surgiram logo na infância, até hoje a assombram.
Ah, embora as feições sejam fortes, por trás das pérolas e dos saltos altíssimos, esconde-se uma menina sensível e meiga. Daquele tipo de garota que sofre calada, que grita baixinho, que se afoga em pensamentos consigo mesma e, depois, digere tudo, sorri e continua firme e implacável em seu caminhar.


Rua247: As pessoas devem olhar pra você na rua e pensar que você já nasceu montada. Quando você era pequena, já parecia uma francesinha passeando pela Felipé Schmidté?
A: Ai, eu tive uma infância bem normal. Todo mundo tem esse estágio tranquilo da vida, né? Mas pode-se dizer que a minha vida começou, mesmo, aos seis anos quando meus pais se separaram. Dos três irmãos, quem mais aguentou fui eu. E é assim até hoje. Acho que é por isso que eu sou a mais independente; ao invés de me revoltar, ter problemas psicológicos, fazer aloca na vida, fiquei tranquila e acho que externei meus sentimentos na forma de me vestir. Assim não fico doida, nem machuco ninguém, né? Ai, será que alguém se machuca pela forma como eu me visto? Ai, tomara que não.

Rua247: Não se preocupe, você não ofende ninguém por ser diva, pode ficar relaxada. Mas, e a separação? Como foi?
A: Foi chata. Morávamos com a minha mãe e um belo dia ela disse: vocês vão passar férias com o pai de vocês. Acho que foram as férias mais longas da minha vida, porque ficamos três anos na casa do meu pai. Minha mãe nos deixou lá e foi pra Espanha. Diz ela ter feito isso porque havíamos morado tanto tempo com uma mulher que seria importante, então, ter uma posição masculina na nossa criação. Hoje analiso que foi bem difícil ter ficado longe dela, só mais tarde notei que quando eu mais precisei, ela não esteve presente.

Rua247: Mas seu pai tomou as rédeas disso tudo e foi um pai presente?
A: Também não. Meu pai sempre foi liberal demais e deixava a gente fazer o que quisesse. Eu ficava muito tempo sozinha em casa com a minha irmã, porque papai tinha 40 anos e namorava uma menina de 19. Tinha sempre a impressão de que ele dava mais atenção pra ela do que pra gente. Mas, pensando pelo lado bom, isso me fez aprender a ter discernimento do certo e do errado logo aos meus onze anos. Uma vez, por exemplo, eu e minha irmã ficamos horas e horas sozinhas – e presas – em casa. A gente tava morrendo de fome, foi horrível, e então descobri que posso ser uma cozinheira maravilhosa. Na geladeira só havia lingüiça e o jeito foi aprender, aos onze anos, o poder de uma churrasqueira elétrica. Se eu não fizesse aquilo, a gente morria de fome. E ficou bem gostoso, tá?


Rua247: E o que mais? Aproveita o embalo e desabafa os traumas!
A: Não foi bem trauma. Para, eu não sou uma louca sofrida. Só foram historiazinhas, amigo. Como a vez em que minha mãe foi pro Rio desfilar na Beijar Flor. Meu pai e a namorada novinha dele foram pular Carnaval aqui em Floripa e eu e minha irmã ficamos de vigília na TV pra ver minha mãe passar na Globo. Pra gente poder acordar na hora, meu pai ensinou que devíamos colocar o celular dentro de uma panela pra fazer mais barulho quando despertasse. Mas a anta aqui colocou na panela. E fechou a panela. Acho que eu estaria dormindo e esperando ouvir o celular despertar até hoje, se meu pai não tivesse voltado pra casa.

Rua247: Então você era uma criança autossuficiente e independente. Até na escola?
A: Na escola eu era a CDF. Quando eu era mais nova, minha professora enchia o saco de mim, porque só eu respondia o que ela perguntava. Minhas notas eram ótimas e meu pai havia combinado comigo que a cada dez que eu tirasse no boletim, ganharia dinheiro. Estudei como uma louca e ele não me deu nada. Meus pais nunca deram valor pras minhas notas, era aquela velha história de “não fez mais que a sua obrigação”. Enquanto isso, meu irmão mais velho era o rei dos privilégios: quando ele passou na oitava série, estava prometido que ele ganharia uma prancha de surf. E ganhou, né, óbvio. Enquanto isso, eu só ganhava parabéns.

Rua247: Opa, brigas com irmão são normais, mas até que ponto essa rixa se tornava um grande incômodo?
A: Eu sou meio revoltada até hoje com isso. Meus dois irmãos são da pá virada, ambos já têm filhos e eu me considero a mais certa de nós três. Eu me revoltava porque não podia fazer nada. Eu era a santa quietinha e calada que ia bem na escola, enquanto meus irmãos eram perdidos, enquanto meu pai namorava uma menina mil anos mais nova e enquanto minha mãe viajava e nunca levava a gente junto. Até me assusto de como eu era tranquila com as coisas, porque eu tive vários motivos pra ser uma rebelde com causa!




Rua247: Agora falando sério, devem ter sido complicadas sua infância e adolescência. Algo que me preocupa é pensar que você não teve a presença dos seus pais quando precisava. A gente costuma, por exemplo, buscá-los para conversas mais sérias. Ou aprender com eles e herdar muito os valores e as formas como eles veem o mundo. Como funcionou com você?
A: Muitas vezes busquei outras pessoas pra falar sobre coisas que eu devia conversar com a minha mãe, porque ela sempre estava ausente. E busquei auxílio até com mães das minhas amigas. Em contrapartida, minha mãe ter viajado me fez ter uma percepção maior do mundo. Foi difícil, mas até nas situações de perigo eu me via sozinha e precisava dar um jeito. Toda vez que alguém batia lá em casa e estávamos somente eu e minha irmã, a gente se escondia debaixo da cama até a pessoa ir embora.  Acho que num determinado momento da minha vida, na adolescência, com descobertas e mais descobertas, acabei me aproximando mais do meu pai, embora fosse complicado dizer pra ele que eu havia menstruado, por exemplo.

Rua247: Descobertas e descobertas. Quais mais?
A: Olha, essa é uma questão que sempre surpreende todo mundo. Não culpo minha mãe, porque várias coisas aconteceram comigo para me tornar quem eu sou, independentemente de ter uma mãe por perto ou não. Mas eu me sentia estranha, porque sempre reparei nas meninas e não sabia ao certo o porquê. Tinha certas curiosidades e minha irmã dizia que era normal mulheres admirarem outras mulheres. Porém, a explicação era sempre vaga e simples demais pra mim. Eu namorei um menino durante minha adolescência, mas o beijava e pensava no quão legal seria namorar uma garota, ao invés dele. Tadinho, né? Tadinho nada, porque eu gostava dele e ele me chutou porque disse que eu era fofa demais. Fofa demais, você acredita?

Rua247: Conta mais sobre a questão da homossexualidade. O que mais você acha ter sido importante na sua infância e adolescência pra você se descobrir lésbica?
A: Isso é meio chato de contar, mas eu quase fui estuprada. Tava voltando do colégio, na sexta série, e um cara de moto parou ao meu lado e me pediu ajuda. Quando você fica muito por si mesma, é horrível. Nesse dia minha mãe fez muita falta. O cara me fez parar e começou a falar coisas péssimas pra mim. Falou sobre a minha vagina e ficava olhando pro meu corpo e comentando, falando tudo de ruim que eu realmente não quero lembrar. Ele pedia pra eu colocar a perna no pedal da moto e abrir mais a minha perna. Eu sentia raiva e medo ao mesmo tempo. Até que eu resolvi ir mais pra frente, porque ele parecia estar fazendo algo meio estranho. Ele estava se masturbando. Quando ele tentou tocar em mim, eu saí correndo. Entrei em casa, fechei o portão e a última visão que eu tenho é dele fechando o zíper e indo embora. Acho que isso me causou um pouco de aversão a homens. Algo como um bloqueio.










Rua247: E será que seu cabelo curto foi consequência disso ou tô falando besteira?
A: Meu cabelo foi curto na oitava série. Na verdade, quando eu era bem novinha, minha mãe cortou meu cabelo e eu fiquei parecendo um sino de igreja. Eu escovava meu cabelo, mas não devia fazer isso. Ficava parecendo um cosplay de arbusto. Ai, como eu era brega. Mas, voltando à oitava série, eu sempre quis cabelo curto porque garotas assim me chamavam atenção. Só que o motivo pelo qual eu cortei foi muito maior do que qualquer vontade bobinha. Cortei porque a dona do salão queria comprar meu cabelo. Simples, eu cortaria e ficaria rica! Com o cabelo curto eu me sentia free, livre pra voar, estava me sentindo uma diva, com licença! Mas, sinceramente, só descobri meu cabelo ideal depois de assistir ao filme Garota Interrompida, com a Winona Ryder.

Rua247: Além do cabelo, você tem todo um estilo próprio que realmente atrai olhares por onde quer que você passe. Como você denomina o estilo da Aléxia?
A: Sempre gostei de coisas de marinho, toda a influência navy, e de pin ups, de tudo da década de 1920, Moulin Rouge e por aí vai. Nunca imitei ninguém, na verdade, por completo. Vejo várias coisas que me fazem pensar que posso absorver pra mim, mas dentro do meu estilo, do meu jeito. Amo piteiras, vestidos franjados, rendas. Muitas rendas. E, bom, por outro lado, deixando a fofura de lado, também gosto de spikes e tachas. Sou um mix de tudo. Mas acho que passei a usar essa pegada mais rock porque me acho muito meiga. Daí contrasta, entende? Vai ver é trauma do chute que eu levei do meu primeiro namorado. Você. É. Fofa. Demais.

Rua247: Mas não tem jeito, você é mesmo fofa demais. No entanto, essa fofura se enconde por trás do carão?
A: Eu sou muito insegura. Aliás, não escreva isso. É bom que continue não parecendo. Tantas vezes as pessoas apontaram minhas fraquezas que acabei criando uma casca pra parecer forte. Talvez essa cara montada que parece um pouco arrogante seja uma proteção. Não que eu seja uma porcelana por dentro, eu sou forte, sim, mas essa vontade de ser durona reflete no meu rosto, no meu jeito à primeira vista.

Rua247: Entendido. Falamos muito sobre sua infância e adolescência. E agora? Como está a Aléxia madura depois de tanta história?
A: Até hoje não me dou muito bem com a minha mãe. Ter lidado com tantas coisas diferentes foi bom: consegui entender o lado dela. Apesar de ser minha mãe, ela tem a vida dela. Não dá pra julgar, né? Não sei se tenho uma relação boa com pontos ruins ou péssima com pontos bons. Discutimos muito por trabalho, ela acha que eu não devo ter rotina, ser autônoma e rica. Ela quer que eu seja modelo, mas eu mal consigo me concentrar pra fazer carão. Com meu pai, hoje está tudo normal, então nem tenho do que reclamar.  Eu me vejo muito como a pessoa sozinha da família. Todo mundo arranjado com alguém e eu na mesma.  Ainda assim, tô feliz por ser quem eu sou. Foi bom ter passado por tudo isso pra hoje saber que sou madura e tenho mais vivência que muita gente por aí.

Rua247: Depois de tudo isso, tome um fôlego e banque a mãe Diná: como será o futuro?
A: Eu me imagino sozinha. Totalmente sozinha. Não tenho medo. Terei meus amigos, mas serei sozinha. Adoro um carinho e às vezes isso faz com que pareça que eu to desesperada por uma namorada, mas não é isso. Eu só não queria estar sozinha. Confuso, mas não entendo o porquê. Tá, eu serei uma velha sozinha com uns 20 gatos em casa. Não sei o que vai acontecer. Só que vou estar sozinha, terei conhecido muitos lugares e serei muito bem resolvida. Tá. Eu queria alguém. Queria que alguém visse quando saio do banho e meus pés estão vermelhinhos. Ou que esteja comigo quando faço Nescau e sai fumacinha pelo leite estar quente. No fundo eu queria alguém, admito, embora me veja sozinha. Será que velhinhas lésbicas ainda transam? Tomara.





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