Mergulhar na subcultura sem se afogar. Talvez tenha sido essa a intenção de Isaac Varzim, o cara por trás das festas mais bacanas do Jivago Lounge, que, além de produtor de suas próprias músicas – e outras tantas de outros tantos também –, é ainda o marido da Paula, o pai do Benjamin e do Matias e o rei de projetos paralelos que fazem a gente ter um tantinho de esperança ao ligarmos os pontos entre cultura e Florianópolis.
Criar uma identidade pode parecer difícil num mundo em que tanta gente busca ser diferente e já nem sabe mais como. Isaac parece nem ter se esforçado para se construir, tudo é muito natural aos olhos dele – e pelas mãos dele.
A cara de mau, a barba comprida e muitas tatuagens podem fazer você confundi-lo com algum rebelde sem causa. Causa até haveria – e das bem justificáveis – para se rebelar, mas ele dispensa.
Rua247: Muita gente costuma dizer que nosso passado diz muito de quem seremos, e, claro, diz muito de quem a gente é. Seu passado diz muito sobre você?
I: Nasci em família cristã e ia sempre à igreja. Até hoje vou à igreja. E se meu passado fala sobre mim? Virei músico dentro da igreja, na banda da igreja. Deu pra aprender bastante coisa lá. Meus anos de colégio foram meio cagados. Eu era o gordinho que não jogava bola, sofria bullying – embora na época nem existisse nome pra isso, eu acho –, e passei meu primeiro grau inteiro estudando no colégio dos ricos da minha cidade, Pelotas, no Rio Grande do Sul. Minha família era simples, então havia ainda mais um motivo pra me zoarem: eu era o que tinha menos grana de todo mundo ali. Fui o último a ter videogame, por exemplo, e isso foi bastante ruim.
Rua247: Sua fase na escola parece ter sido complicada. Outras frustrações dessa época?
I: Eu sempre fui muito tímido e sofria calado. Na sétima serie, era tão ruim ir ao colégio que inventei uma doença pra poder faltar aula. Meus pais começaram a se assustar e a história tomou proporções maiores do que devia. Fiz tomografia e tudo. Diagnosticaram que eu tinha labirintite. Médicos bons, né?
Rua247: E quando essa fase passou?
I: Tive um colega na sétima série que era metaleiro. Cheio de camisas de banda, cabeludo. E ele fez cair a minha ficha. O cara tava no colégio dos playboys e, ainda assim, era fora do padrão. E assumia a bronca, como algo do tipo “não se meta comigo, sou diferente de vocês e é isso aí”. Então virei metaleiro. Ele me achava meio bunda mole porque eu era sem personalidade, mas, acabei assumindo aquela postura de diferente e não me encheram mais o saco. Comecei a estudar sobre o tipo de música que ouvia, queria ir pros lados da subcultura sem sair do eixo. Meu cabelo cresceu, diziam que eu era maconheiro, marginal. Eu tinha treze anos, cara, só fui ver maconha com vinte. Ah, e posso dizer que a minha libertação absoluta desse estigma de bundão excluído veio no ensino médio, quando fui estudar no Cefet. Lá havia todo o tipo de gente e ninguém tava nem aí pro seu dinheiro ou pro seu estilo.
Rua247: Essa sua transformação foi mais do que física, é claro. Sua família lidou de que forma com tudo isso?
I: Minha mãe era artista plástica e sempre foi tranquila com isso. Meu pai era professor, então era tão tranquilo quanto. Minha igreja é a Luterana, também não havia muita pressão. Eles me aceitavam do meu jeito.
Rua247: Estar dentro de casa com a família não era problema, então?
I: Quando completei 14 anos minha mãe descobriu que estava com câncer. Vivi minha adolescência inteira assistindo aos altos e baixos da doença dela. Foi difícil, embora eu sempre tenha respeitado muito minha família. Só com vinte anos tive vontade de ir embora, mas, ainda assim, havia aquele medo de deixar minha mãe doente. Ela sabia que eu queria ir pra Curitiba. E me forçou a ir. Fui pra lá e dois meses depois ela faleceu.
Rua247: E como foi a vida depois disso?
I: Cheguei a Curitiba e prestei Teologia com ênfase em cidades e missão urbana. Daí veio uma bad depois que minha mãe morreu e resolvi fazer música. Fiz três anos e pulei fora também. Acho que essa coisa de desistir de tudo veio dos meus tempos de colégio. Eu era o inteligente que não estudava, muito do que ensinavam eu já sabia, não havia tesão em aprender, sabe? Não consegui seguir à risca e ir até o fim. Mas foi aí que comecei a dar aula, trabalhava também fazendo serenatas, viajei o estado inteiro do Paraná, de cidade em cidade, fazendo shows e oficinas musicais com um projeto criado pelo governo. Só me encontrei, mesmo, depois que comecei a trabalhar com softwares de produção musical. Era um cara meio recluso, nunca fui muito expansivo e descobrir que dentro de casa, no meu quarto, dava pra fazer um disco inteiro foi uma realização pessoal incrível. Em dois anos gravei quatro discos nessa coisa de ficar trancado em casa fazendo música. Considero que a revolução digital teve como um dos pontos mais altos o fato das pessoas poderem fazer seu próprio material, sem depender da resposta ou opinião de alguém.
Rua247: A liberdade que morar sozinho proporciona não te desvirtuou nem por um momento?
I: Fumei maconha, bebi, mas eu era muito cagão.Uma vez comi um bolo com maconha e fiquei uns três dias morrendo. Não contente, comi numa outra vez brigadeiro de maconha e mesmo quatro dias depois eu sentia uns negócios loucos no meio da rua. Preferi parar. Tive curiosidade de provar outras drogas, mas morria de medo de perder o controle. Hoje tenho preguiça de quem usa. No mais, mais nada.
Rua247: Viver longe de casa pode parecer incrível, pelo desprendimento e pela maturidade que vêm juntos a esse estilo de vida. Como foi deixar seu pai sozinho depois da morte da sua mãe?
I: Foi foda. Meu pai ficou sozinho porque sou filho único. Eu achava até então que, mesmo de longe, tínhamos uma relação perfeita e vejo hoje que não era tão perfeita assim. Era aquela coisa de gaúcho, e, ainda por cima, descendente de alemão. Mantínhamos certa distância. Mas ele segurou bem. Ficou sozinho, e, ainda depois de ter se aposentado como professor, cursou psicologia e trabalha como psicólogo até hoje.



Rua247: Seu pai sozinho lá, mas você não se sentia sozinho em Curitiba?
I: Aí entrou a Paula na minha vida. Fui a uma festa de recepção dos calouros da dança. Os caras do curso de música esperavam ansiosos pelo momento porque só tinha menina novinha. Era fácil. Fui à festa querendo caçar bailarinas e acabei encontrando a Paula. O ano era 2005, ela já fazia faculdade de dança e era minha antítese completa. Até hoje, na verdade, ela é maluca, mija na rua, é despirocada, é meu oposto. Então era meio que um desafio. Ela era diferente de todas as mulheres. E, cara, no primeiro dia em que a conheci, já sabia que ia me casar com ela. Foi sofrido, a gente não namorou porque ela era porra louca demais pra mim. Eu me apaixonei e ela nem aí, fugiu, sumiu do mapa. Só três meses depois a gente se conheceu melhor e no ano seguinte a gente se casou.
Rua247: E sua história com Floripa, começa quando?
I: Em 2007, Paula tava terminando faculdade e nós estávamos de saco cheio de Curitiba. A gente queria ir embora. São Paulo ou Floripa, um passo pra cidade grande, ou um passo pra trás, pra uma cidade menor, com cara de interior. Conseguimos um trabalho aqui, que nem deu certo, mas viemos. Vir pra cá foi muito bom. A cena artística em Floripa fala muito da cidade. Podem até existir problemas, mas eu e Paula mantemos uma visão romântica porque em pouco tempo a gente conheceu todo mundo e foi bem recebido por todos. Engraçado que chegando aqui, eu achava que o povo de Curitiba era fechado, mas descobri que havia me tornado um curitibano, então existiu todo um processo de ruptura pra deixar de ser curitibano e me tornar mais receptivo.
Rua247: Depois de se mudar pra cá, tentar construir uma vida nova, em que momento você conheceu o Jivago?
I: Cheguei aqui e dei umas aulas de produção musical e uma das minhas alunas era DJ do Jivago, a Angelina Capella. Ficamos amigos e ela me apresentou todo esse mundo alternativo de Floripa. Fui ao Jivago e pirei, cara. Curti muito o ambiente e três semanas depois comecei a discotecar lá. Logo passei a promover a Plastique, que ocorria todas as quintas-feira, e deu muito certo. Paralelamente, criei com a Paula o Superpose, nós tocávamos Electro-rock. Em dois anos, fizemos mais de 120 show e a imprensa local apoiava bastante a gente. Junto do Discobot e do Mottorama éramos chamados de Trindade Santa do Electro-rock. Foi demais, cara, mas hoje nem existe mais nada. Tempos em que o pop não tinha explodido dentro do mundo alternativo.
Rua247: Como você considera essa transição da cena por aqui, analisando a inserção do pop no underground?
I: Um exemplo bom é citar Justice e Calvin Harris. Justice produzia musicas com sample da Britney Spears. Calvin Harris remixava Shakira. Era o alternativo se rendendo ao pop. Daí veio a Lady Gaga e criou um novo conceito de pop, em que tudo virou uma coisa só. O lado A e o lado B se misturaram. Antropologicamente é incrível e tem a ver com o negocio da informação ser livre. Você assiste ao Tarantino e ao Godard e é a mesma coisa. Arte burra e arte inteligente não existem mais. Hoje você toca Lady Gaga e Ramones no mesmo set e todo mundo entende. Acho esse momento incrível. Em contrapartida, hoje passou esse fervor da musica pop. Antigamente, musica pop era tratada como musica trash. Se alguém tocava O amor e o poder da Rosana, todo mundo pirava. Se tocava Madonna, também.
Rua247: O Jivago entra onde em tudo isso? Está acompanhando essa mudança também?
I: Claro, é uma tendência quase que universal. Eu promovo as festas lá e promover festa tem a ver com apresentar um estilo de vida. O estilo de vida que eu tento vender com o Jivago não envolve usar drogas, por exemplo. Não que as pessoas que frequentam não façam isso, mas não é fator definitivo. Se as minhas festas são gays? Não é legal definir. São muitos valores. É a musica, a diversão, sem rótulos. Depois que eu me tornei pai, fiquei ainda mais preocupado com isso. As pessoas acham que ir a baladas alternativas é sinônimo de fumar, beber até cair e usar drogas. E me recuso a carregar um estigma de incentivar pessoas a terem esse tipo de vida. Tenho filhos e não é essa a imagem que quero que eles tenham de mim, algo como “meu pai trabalha num lugar que todo mundo vai pra ficar doidão”.
Rua247: Filhos. Hoje você é um pai de família, de uma família incrível, por sinal. Como foi essa transição e o que você aprendeu se tornando pai?
I: Achei que nunca conseguiria ter filhos. Essa questão da minha mãe ter morrido me trazia uma carga horrível em pensar que nem aos 30 anos eu chegaria, havia expectativas muito baixas com relação ao meu futuro. Mas, em contrapartida, a Paula é quem me empurra pra cima, somos extremos, porque ela não tá nem aí pra isso, ela queria ter filho e pronto. Então tive filhos. E, cara, se antes eu achava que não chegaria aos 30, hoje quero passar dos 90. Até pra dar conta de cuidar deles. Ter filho é demais. É foda, é difícil, faz 4 anos que eu não durmo mais do que oito horas em uma noite. A rotina muda completamente. Só que é demais. A perspectiva de família também muda. Quando era eu e a Paula só, eu media muito a relação por meio da paixão que sentíamos um pelo outro. E quando nossos filhos nasceram, comecei a entender que amor não é só sentimento. É decisão também. E um dia acordei e decidi que a Paula seria a mulher da minha vida, com que passaria o resto dos meus dias. E muitas dificuldades vêm, mas não posso me guiar só pela paixão. Por isso, ah, cara, ser pai foi uma das melhores coisas que me aconteceu.
Rua247: Depois de tantas histórias, quais as perspectivas pro futuro?
I: Não sei te falar, cara. Não sei. Fazer festas exige um pique enorme, já está ficando pesado, não dormir, precisar acordar cedo, levar as crianças à escola. Mas, ah, talvez eu tenha um restaurante daqui uns tempos, que funcione só de dia, é claro.
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